(Depoimento do Professor Luiz Alberto Gómez de Souza. In: Concepção do educador e da universidade. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1988, p.81-83).


          "Comecei minhas atividades profissionais em 1962 como assessor de Durmeval Trigueiro Mendes, na Diretoria do Ensino Superior do Ministério de Educação, depois de vários anos trabalhando em movimentos estudantis. Era um tempo em que as experiências educativas britavam com incrível vitalidade, momento das experiências de cultura popular e da reforma universitária. A velha estrutura do Ministério, sedimentada durante o Estado Novo na longa gestão Capanema, resistira bravamente e criaram-se mandarinatos, verdadeiros feudos de poder e de influência. Entretanto, afortunadamente, Anísio Teixeira e toda uma equipe renovadora conseguira transformar alguns espaços, como o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Ali Darcy Ribeiro e Durmeval Trigueiro faziam suas reflexões originais. Em fins de 1961, na rápida passagem de um ministro parlamentarista, o ensino superior perdeu seu diretor de muitos anos e de enorme poder acumulado e brotou inesperadamente a possibilidade de afastar rotinas e de repensar a área. Durmeval aceitou o posto, ciente da dificuldade de vencer inércias burocráticas, e abriu o ensino superior aos novos ares educativos.

          Terminava a longa discussão da Lei de Diretrizes e Bases, surgia o Conselho Federal de Educação como instância de políticas educacionais e dava-se uma explosão desordenada com a criação de novas faculdades, nem sempre correspondendo a necessidades reais, mas às vezes frutos mais ou menos arbitrários de interesses políticos locais, afirmação de prestígio de cidades médias ou o começo de um empresariado escolar mais atento aos lucros que à difusão do conhecimento. O movimento estudantil realizara, em 1961, o Primeiro Seminário da Reforma Universitária em Salvador e, no ano seguinte, a UNE dirigiria a "greve do terço" (pedindo um terço de participação estudantil nos colegiados universitários). Tempo fértil em que tudo se questionava e se devia revisar. 

          Durmeval tratou de inserir o Ministério em todo o debate, através de sua Diretoria. Um primeiro cuidado foi o de pôr um mínimo de racionalidade no crescimento do ensino superior. De 1961 a 1962, quando assumiu o cargo, as matrículas universitárias subiram de 98.900 a 107.300, cifra que hoje parece pequena, mas que dez anos antes (1951) era de apenas 58.800, para chegar dez anos depois (1971) a 561.400. Era o começo de um ciclo de rápida expansão. Expansão para quê e para quem? Anos mais tarde, em 1968, membro do Conselho Federal de Educação, Durmeval diria em parecer o que já desde 1962 tentava aplicar como administrador: "a política expansionista no ensino superior, na forma como vem se processando entre nós, é antidemocrática e divide o país em dois: o dos doutores... e o das classes populares... O que há é o alargamento crescente de uma faixa de privilegiados das classes liberais, a quem se concedem todas as oportunidades."

          Um de seus primeiros cuidados como Diretor foi o de analisar cada nova proposta de surgimento de escolas e pôr termo às influências clientelistas. Durante todo o ano fui descobrindo a trama teimosa das pressões políticas, a petulância das influências, acostumadas à impunidade, e, frente a elas, a capacidade de resistência de Durmeval, seu forte sentido ético e indignação do educador que acreditava que, ou o ensino assumia pautas de rigor ou se dissolvia num comércio medíocre e mediocrizador. Na defesa dos princípios educativos era inabalável e de nada servia que as pressões buscassem ricochetear de mais acima. Ele deixava claro que preferia renunciar a ceder em certos princípios que julgava inegociáveis. Manteve-se no posto até o fatídico ano de 1964 pelo prestígio de sua postura e coerência de suas atitudes.

          Acompanhei de perto suas atividades como Secretário do Fórum Universitário, onde reitores e dirigentes estudantis se encontravam, e na paciente tarefa de tentar completar o estatuto do magistério universitário, até hoje inconcluso, pelo cruzamento de interesses contraditórios e diversidades das situações particulares. Seguia com extremo cuidado os trabalhos do Conselho Federal de Educação, onde se traçavam as novas políticas educacionais. Foi o tempo de duas das gestões da UNE mais criativas, nas presidências de Aldo Arantes e Vinícius Caldeira Brandt. Por meu passado de experiência na área, fiz a ponte da UNE com a Diretoria e sempre encontrei Durmeval receptivo ao diálogo e atento ao movimento dos jovens. Tinha o maior interesse pelas atividades do Movimento de Cultura Popular de Recife e esforçou-se, através de um grupo de trabalho, o Grupo de Reequipamento Técnico-Científico das Universidades do Nordeste, para melhorar as condições das escolas de nível superior dessa região, onde estavam as raízes de sua família e de sua formação. 

          Homem afável, fala mansa, sorridente, gestos tranqüilos, preferia pensar com cuidado antes que decidir no atropelo. Irritava seja as burocracias rotineiras e clientelistas, seja os apressados improvisadores. Manteve o hábito de educador de pôr tudo em discussão, sabendo ouvir com paciência, desafiando o interlocutor com argumentos sempre renovados, reescrevendo várias vezes suas decisões administrativas até que as encontrasse conseqüentes e válidas. Num meio burocrático em que muitas vezes o que pesava era o poder ou o arbítrio, ele queria a discussão franca. Tomar uma decisão era para ele um ato da maior responsabilidade em suas implicações éticas ou políticas. Seu ritmo nem sempre coincidia com tempos de sofreguidão e de produzir coisas a qualquer custo, tantas vezes impensadas e contraditórias. Sofria com isso, já que era minucioso e punha cuidado em todos os seus atos. Pluralista e respeitador das diferenças, articulava tranqüilamente sua formação católica e sua afinidade teórica e prática com o grupo pioneiro da escola nova, num momento em que se levantavam tantas barreiras ideológicas e emocionais. De minha convivência com ele por todo um ano, ficou como um modelo de seriedade rigorosa, num tempo cheio de tensões, pressões e atropelos e como um exemplo de prática democrática, às vésperas do longo período autoritário. Que é isso senão o retrato acabado do educador que sempre se propôs ser e que conseguiu viver com coerência e plenitude?"

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