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A Universidade e sua Utopia

Reconhecendo a multiplicidade de saberes que caracteriza
a universidade contemporânea, sugere o exame da conciliação entre
o saber literário e o tecnológico, entre o humanístico e o profissional,
advertindo que a crise da universidade requer um
novo aparelho institucional, sendo a crítica o
instrumento adequado para tratá-la, como
saber radical e reinstaurador da realidade objetiva.

 

          1. Não receiem os leitores, que não pretendo voltar aos assuntos sobre os quais já fizeram cabedal comum a ciência dos técnicos e a consciência de todo mundo. Esse saber generalizado é que talvez possa causar-nos temor, pois muitas vezes, no Brasil, em matéria de educação, procura-se combater erros verdadeiros com verdades aparentes. Simplesmente porque essas verdades aparentes passam de boca em boca, de geração em geração, como uma linguagem que - inconscientemente - expressa e perpetua as estruturas fundamentais da sociedade. Sabemos todos - e o sabemos sobretudo depois do surto das doutrinas estruturalistas - que permanecemos atados, em certa medida, às estruturas que nos cercam, através da linguagem que as interioriza em nosso pensamento, como carne que se faz verbo. Nem sempre os problemas são colocados da mesma forma, é verdade, mas os problemas colocados são sempre os mesmos, e isto significa que o nosso discurso interior não muda, mas ao contrário, corre invariavelmente sobre o mesmo leito. Tomo aqui a palavra linguagem, obviamente, no sentido filosófico e lingüístico, como o ser do universo falado em nós (segundo a fórmula de Heidegger), a imagem da sociedade traduzida em nosso logos interior. As fórmulas variam, surgem novas palavras, novas fórmulas e leis, mas nenhum ser novo irrompe por entre elas: nenhum logos instaurador de uma realidade original. A irrupção dos jovens como co-criadores do mundo, em vez de simples herdeiros de um universo modelado por outros, esse fato fundamental da cultura moderna, para dar apenas um exemplo, reclama uma estrutura inédita da universidade e, correspondentemente, uma linguagem nova.

           2. A multiplicidade dos saberes, assim como a possibilidade de sua conciliação, constitui outro aspecto dramático da crise universitária. A universidade é, como hoje a chamam alguns, multiversidade, porque tem muitas vertentes - inclusive no sentido de muitos saberes e de diferentes gerações. A cada geração, as coisas sabem desiguais, mas nas sociedades unidas, com um mínimo de coerência que permita a sua identificação, ocorre o fenômeno que o filósofo espanhol Julian Marías chamou de o consabido. Nas sociedades partidas, ao contrário, os "saberes" (na acepção mais remota, que coincide com sabores) se diversificam ampla e, às vezes, disparatadamente. O saber literário e o tecnológico, o humanístico e o profissional, o do passado e o do futuro. O pluralismo da multiversidade não decorre só das diversidades simultâneas, quanto das diferentes perspectivas temporais. Sobre ele deve construir-se uma nova unidade, fecho da universalidade - vocação hoje, como nas suas origens medievais, da instituição universitária. Só que são diferentes as duas unidades, uma já estruturada, e outra, existindo tensionalmente, isto é, emergindo constantemente da contradição.

Todo processo cultural é um processo de conversão. Se entre as novas e as velhas gerações, entre as diversas famílias culturais, os técnicos, os humanistas, os cientistas, os sábios e os políticos, não se articula um processo de conversão, que resta da universidade como tal? Que resta para a apropriação, que é o método indispensável da comunicação cultural, assegurando entre os desiguais, não a indesejável uniformidade, mas o mínimo de homogeneização para o entendimento, de tolerância para o convívio, e de unidade para a sobrevivência da civilização?

           3. A crise da universidade é, ainda, a crise do número. Ela já não pode fazer dentro de seus muros o que antes fazia, quando tinha de formar um reduzido grupo de pessoas privilegiadas, que se destinavam ao governo da sociedade. Hoje, a sociedade é conduzida, cada vez mais, pela práxis da maioria dos que a integram - práxis feita de apercepção e de engajamento, de inteligência e de fervor. O número de pessoas que precisam adquirir autonomia intelectual para exercerem tal protagonismo se amplia na medida em que a sociedade se democratiza, e o único instrumento de promover essa autonomia é a educação. Daí, o número dos que obtêm, na sociedade democrática, o direito de ascender à universidade, ser muito superior à capacidade desta em recebê-los, uma vez que a referida ascensão constitui um fenômeno moderno, e as universidades, tais como existem, correspondem a uma exigência do passado. O impasse, aparentemente insolúvel, requer imaginação criadora capaz de substituir os mecanismos clássicos da instituição universitária por um novo aparelho institucional, servido por uma nova metodologia de ação.

           4. Entretanto, ao mesmo tempo que essas crises estão ameaçando submergir a própria universidade, a maioria das nossas reformas universitárias têm passado ao largo, sempre a girar em torno de conceitos como cátedra, departamento, institutos, classes docentes, ou ainda, em torno da geometria abstrata das estruturas. As formas do saber crítico e criador são freqüentemente substituídas por formas estáticas e normativas, que se esgotam no processo ordenatório superficial. Não é que essas categorias não sejam importantes, mas elas contam apenas subsidiariamente, como simples instrumentos operativos a serviço de uma idéia da universidade. Se não se muda uma idéia, a crise não se resolve; mas se a crise for enfrentada, verticalmente, a reforma se fará com base noutras perspectivas e servida por outros apetrechos.

A própria expressão "crise da universidade" parece afastar qualquer dúvida: trata-se da crise de uma instituição, ou seja, de uma idéia.

Crise é fratura numa substância. Não se trata de rearrumar os pedaços de uma estrutura decomposta; nem de compor nova estrutura para salvar velhas idéias. A crise é uma questão de objetivos, de funções e de métodos. As formas de organização cristalizam, no plano instrumental, as opções inscritas na ordem dos fins. Se estes não mudam, insisto, nada muda substancialmente. Por isso mesmo, o único instrumento para tratar de uma crise é a Crítica, no sentido forte dos filósofos, como investigação fundamental da realidade, isto é, como saber radical e re-instaurador na ordem objetiva.

Dentro da perspectiva regulamentar, administrativa e jurídica, os mais recentes projetos de reforma universitária constituem uma obra significativa. O trabalho da comissão que os elaborou foi tão longe quanto lhe permitiam, muito menos o curto prazo, que os limitados objetivos que lhe foram atribuídos.

           5. Felizmente, ao plano institucional se sobrepõe o plano profético; sobre as construções de hoje pairam as realidades entremostradas no amanhã por essa inteligência do futuro já consagrada com o nome de prospectiva.

É preciso reconhecer que a universidade contemporânea tem vivido de ideologias, e que ela precisa, urgentemente, construir sua utopia. Refiro-me à utopia no sentido etimológico que inspirou a Thomas Morus essa palavra, pois a universidade verdadeira não está hoje em lugar nenhum, mas a nossa imaginação exige que ela comece a existir em algum lugar. A diferença entre a utopia de Morus e a de nossos dias, é que aquela era uma libertação da realidade pela fantasia, e esta representa uma construção ideal, imposta por uma fantasia onerosa à precariedade do presente. Não se trata mais de um mundo impossível, mas de uma possibilidade que se torna efetiva na medida em que estejamos dispostos a desentranhá-la das agruras do mundo atual pela lucidez e pela coragem. Ela constitui, apenas, uma outra forma de realismo.

 

 1. A utopia pedagógica

           Em conferência pronunciada em setembro de 1967, num simpósio sobre o ensino superior realizado em Diamantina, sob os auspícios do professor Paulino Guimarães, referimo-nos à utopia pedagógica nos seguintes termos:

          "A comunicação cultural e pedagógica que cabe à universidade promover entre professores e alunos não é, de nenhum modo, a que se fixou na opinião geral: a que se produz entre o indutor e o induzido, o rico e o pobre, o ato e a potência, o informado e o desinformado, o docente e o discente, o acabado e o inacabado. Se fosse assim, não teríamos fórmula mais adequada para liquidar com o fluxo da civilização, mediante a sobrevivência de moldes culturais até o ponto de seu apodrecimento.

          Em vez de o aluno reduzir-se ao ser do professor, ele reduz o ensinamento deste ao seu próprio ser; e mais, ele modifica o ser do professor, o conteúdo do logos magisterial, pela incidência nele de seu logos próprio, feito de imaturidade - abertura, e não apenas de imaturidade - tábula rasa. O erro de nossa visão costumeira é não concedermos ao jovem que ele tem o seu logos, e que 1º) só a partir deste se pode engrenar a sua comunicação verdadeira com o logos do mestre; 2º) o logos do aluno é válido por si mesmo, não por simples complacência - demagógica ou paternalística - dos adultos, embora seja menos rico do que o deles, na medida em que o deles esteja enriquecido pela memória cultural, aquela de que falava Gasset, formada das vigências acumuladas e enriquecidas ao longo do tempo. Pois quando, em lugar de fixar as vigências do passado, se mantém o passado sem vigência, então é mais rica a criatividade das novas gerações inquietas, que o "preparo" convertido em simples caixa sedimentária do que já aconteceu. Deve-se atribuir aos jovens o direito de colocar no diálogo, que é o fundamento da universidade, a novidade de sua indagação, a exigência de sua visão com novas raízes, a originalidade de sua apercepção (no sentido herbartiano do termo) na qual os elementos projetados de dentro são mais poderosos que os elementos internalizados de fora. Aqui se aplica bem a palavra de Rimbaud, quando, mais que changer la vie, reclamava a necessidade de recommencer la vie."

          Uma vez que o que aprende reduz o que está fora ao que está dentro, poder-se-ia parodiar Platão, que dizia (por outras razões e dentro de outro contexto filosófico) que saber é recordar, sugerindo que aprender é um ato criador, interno, do ponto de vista psicológico, e - poderíamos nós acrescentar - instituidor, do ponto de vista cultural. Tem-se de encontrar o modo de captar o logos: do aluno, pelo professor, e deste, por aquele. Não é isto a comunicação intelectual, docente? Não foi este o método de Sócrates? Se o esqueceram as civilizações posteriores, foi que, durante os séculos, se foram acumulando em cima desse diálogo de liberdade e de respeito ao poder de criação e de originalidade de cada logos, as tendências autoritárias, "docentes", despóticas. Em grande parte, pela tremenda complicação política que o desenvolvimento da humanidade trouxe ao ordenamento do diálogo entre as pessoas. Na cultura grega, as relações humanas, dentro do ecúmeno político (embora neste só uma parte da comunidade fosse acolhida) eram amplamente criadoras e livres, e a política era tão límpida que através de suas estruturas se filtrava a conversatio das pessoas; tão flexível, que essas estruturas tinham apenas a móvel consistência da conversatio; tão orgânica, que a polis mesma era a expressão geral e sincrônica, também da conversatio. A paideia e a politheia faziam parte da mesma harmonia.

          Nunca mais o espírito se encontrou consigo mesmo, depois de ter-se lançado na aventura da cidade. A mais ousada tentativa foi a de Hegel, reunindo de novo o subjetivo e o objetivo, o ser para dentro e o ser para fora, a vocação do indivíduo e a vocação da polis, mas o afinal rígido monolitismo de sua unidade não pôde repetir a flexível e transparente harmonia da antiga aventura do mundo helênico.

 

 2. Volta ao método socrático

           A meu ver, a Pedagogia não se salva sem a volta, não direi a Sócrates, mas ao método que ele iniciou, de bravo e singelo respeito à verdade do homem e do seu logos. A confiança na sua criação. A confiança em que, de sua originalidade, o mundo se enriquece, desde o pequeno círculo da escola até o maior, da Nação, e o amplíssimo, da humanidade. Começa na escola: pois, de resto, se não se confia no ser criador do aluno, como se poderia esperar da atitude do cidadão e do profissional uma contribuição ativa à vida social e à atividade pública? Não é por causa disto que a escola é preparação para a vida? E a originalidade da nova educação, com Dewey e Claparède, Montessori e Decroly, não consiste em reconhecer que a escola é preparação para a vida na medida em que ela própria é a vida? Não parece contraditório que, não se permitindo aos alunos viverem a experiência de sua criatividade, se exija depois a criatividade do homem engajado, como cidadão, profissional etc.? Será que se espera para depois, por encanto, o momento de irrupção da originalidade, da força criadora? Tal pressuposto novamente contradiz o bom senso e a experiência, pois a originalidade existe... nas origens (vá lá a tautologia), e mais existe quanto mais próxima delas, e o normal é estar fenecida ou enfraquecida ao longo do tempo. Lembrou com razão Jaspers que a genialidade é inerente à criança, e podada, depois, pela sua implacável inclusão no molde adulto. A educação do conformismo não pode produzir indivíduos criadores; a educação da bravura mental com a disciplina da verdade, esta é que logicamente pode levar aos gestos criadores, tão necessários aos membros de uma sociedade democrática e de um mundo em mudança. O que a universidade deve fazer não é abafar a criação juvenil ou ignorá-la, mas canalizá-la; temperar-lhe o rústico vigor sem diminuí-lo. Evidentemente, a exacerbação da criatividade, das diferenças de cada um em relação aos outros, geraria aquela insuportável tensão que a sociedade repele para sobreviver - procurando apoiar-se em coisas mais estáveis, mais gerais, como observou Bergson - o que talvez seja a razão da invencível mediocridade da sociedade como um todo, assim como da importância dos indivíduos dentro dela enquanto fontes de recriação; e da necessidade de um sistema que harmonize os dois mundos - o indivíduo e a sociedade - por um processo, não só de mútua contenção, mas, sobretudo, de recíproca fertilização.

          Ora, o método pedagógico é o método da conversão; o que significaria exatamente esse aceitar, dando; esse receber, recolocando-se no que é dado; esse aprender, tirando de si, o que significa aprender, criando.

          A tradução moderna desse método se chama pesquisa. Não me fixarei nas questões de detalhes que nos desviariam de nosso tema, e sim no problema do método que permite descobrir a Verdade sob muitas verdades; o Uno sob o múltiplo, a Unidade que caracteriza a instituição universitária sob a pluralidade dos que a constituem.

          Declarava Flexner que a universidade é um organismo, caracterizado pela altitude e precisão do fim, unidade de espírito e de propósito. Não parece soar arcaica essa visão numa universidade moderna, desesperançada e talvez até desinteressada de repetir a façanha da unidade de suas origens medievais? A multi-versidade não substitui a uni-versidade? Todos os saberes, todas as formas de adestramento, quase diria, todos os níveis - pois vai da pós-graduação à extensão do saber ao povo - todas as ideologias? Clark Kerr acredita francamente na derrogação dessa universidade de Flexner, com a conceituação que empreende da multi-versidade.

          De nossa parte, não vamos por inteiro para nenhum dos dois lados, antes acreditamos que se trata de uma posição vencível, e que de fato deve ser superada.

          A universidade moderna é, simultaneamente, una e pluralística. O antigo Presidente da Universidade de Chicago, Hutchins, igualmente citado por Kerr, perplexo diante do prestígio das faculties e pelo aparente esfarelamento da multiversidade, definiu-a como uma série de escolas e departamentos separados, mantidos juntos por um sistema de aquecimento central.

          Acreditamos que há mais do que isso, do que um simples clima de convívio; acreditamos que o governo da universidade deve ir mais longe: não se trata apenas de aproximar o que está disperso, estimular o calor do convívio entre interesses separados. Trata-se de colocar frente a frente os setores diversos e, além deles, os próprios antagonismos da cultura, para encaminhá-los no rumo da unidade. A universidade não pode tomar partido por uma ideologia, e fechar as portas à controvérsia sobre as demais. Não pode tampouco instalar dentro de seus muros a guerra entre elas. Nem pode, finalmente, ignorá-las, como se a cultura universitária pudesse ser verdadeira, desidratando-se pela falta de contato com a realidade cultural do mundo.

          Não haveria uma quarta via? Acredito que sim, a via da conciliação sem compromissos, salvo com a objetividade que é o ideal da ciência. E desde logo acreditamos que o novo humanismo é baseado na ciência (sem fechar-se nela), exatamente porque a ciência, na civilização atual, de simples parte da sabedoria, muitas vezes tomada como oposta à sabedoria, se tornou o principal ponto de partida para organizar a totalidade, a harmonia, a unidade. Assim como na universidade medieval coube esse papel à fé, e até os começos do século XX, à razão no sentido do iluminismo.

          Não repelir os contrastes ideológicos: desideologicizá-los, para se tornarem substância da cultura verdadeira, aquela dentro da qual possam todos, de alguma forma, encontrar-se. Raspar às ideologias a crosta dos ressentimentos, da má consciência - ou da inconsciência geradora de fanatismos - das aderências históricas e culturais que permanecem como coágulos na corrente viva da cultura. É a redução dos contrastes à diversidade em vez da contradição. É a integração dos contrastes na torrente cultural, na qual se enfileiram todas as diversidades como se fossem expressões funcionais e complementares de uma totalidade em devenir.

          O que é necessário é reduzir as ideologias, fenomenologicamente, é retirar o joio do trigo, o puro do impuro, como também, o real, do aparente; o permanente, do circunstancial; a verdade, das falácias que a escamoteiam. Nesse nível a universidade encontra a plenitude, como instituição da cultura, da continuidade e da vitalidade da cultura, íntegra de passado e presente juntos, pois a integridade da universidade é, estranhamente, não a do acabado, com todas as suas peças - mas a do acabado até agora, a plenitude do rio na superfície mais alta de suas águas. Uma plenitude inacabada, eis o seu paradoxo. Por isso, toda rigidez, todo imobilismo, todo ideologismo que pretenda ser a consagração de um momento do rio, como se fosse toda a sua longa viagem, tudo isso é mesquinho e falso. A universidade é tensão permanente entre a conservação e a criação da cultura.

          Depois dessa depuração, todas as verdades, embora diferentes, podem conviver com um mínimo de homogeneidade, ou seja, de objetividade reconhecida pelo espírito. Esse reconhecimento é a ciência quem faz. Não é sem razão que, no pensamento filosófico contemporâneo, surgiu o prestígio da fenomenologia em estreita ligação com o impulso da ciência. A fenomenologia reduz o dado ao seu conteúdo essencial; e a descoberta desse conteúdo corresponde ao momento da captação que o espírito faz de seu logos, ou seja, da plena possessão do logos pelo espírito.

          A pesquisa significa a busca de um novo cogito, instaurador; só na solidão artesanal que ela propicia isso é possível. Solidão da conversão. Quem recebe uma verdade precisa ficar só com ela e revesti-la de seu próprio ser; ao voltar para a comunicação com o nosso parceiro, ela vem embebida do que elaborou a nossa intimidade solitária. E, por isso, a verdade, que se enriquece pela contribuição de todos, tem de alimentar-se na solidão de cada um. Na sua apropriação. O vínculo pedagógico é apenas isso - uma conversatio entre dois logos; de um a outro, o tempo da germinação. Um propõe, o outro acolhe, e ao devolver o que lhe foi proposto, a resposta será a recusa, pela proposição de outro verbo, ou a adesão, na qual o verbo de quem recebeu se integra - enriquecendo-o - no verbo de quem deu. A conversatio é uma conversio. Jamais o verdadeiro método pedagógico pode reduzir-se a esse simples jogo mecânico de ações e reações que predomina em nossas universidades. Aulas apressadas, respostas apressadas, provas apressadas. Não há tempo para pensar; nem para que o diálogo seja articulado entre professores e alunos. Como florescer o logos do discípulo, sem a solidão das horas de estudo e sem o estímulo da conversatio? E o do mestre também se enfraquece, pela simples razão de que a conversatio lhe é igualmente necessária, a ele - e sem os novos horizontes que o contato com os alunos lhe oferece, o seu verbo perde os estímulos que poderiam lançá-lo não só para fora de si, como também para além de seu tempo. A aula magistral, um verbo torrencialmente lançado da cátedra (que é muito mais um gesto mental que o cargo há pouco suprimido) - um verbo, repito, que não se articula, em nenhum momento, com o do aluno; esse método retórico, esse esforço unilateral, denunciam duas coisas: 1º) que não se trata propriamente do verbo, mas da verbosidade, que está para aquele como a folha para o fruto; e 2º) que não há confiança na criatividade do estudante. Pois este é parte essencial do diálogo, sendo o seu logos próprio que instaura a sua própria cultura, dando forma à sua experiência. Tudo que lhe for ensinado, ou não será apreendido, ou o será pelo modo de sua irredutível originalidade.

          A sabedoria inglesa criou o método de tutoria nas universidades, exatamente porque os ingleses viveram o bastante - e com bastente senso prático - para aprender o que é a educação. Lá, o aluno se faz, como na Ágora com Sócrates. E o acompanhamento do professor, longe de favorecer as omissões ou a desídia, constitui tarefa muito mais árdua que o dar aulas, porque é uma vigília permanente - e não o contato fragmentário e mecânico - para engrenar a sua reflexão com a do aluno na hora exata. Esse zelo de presença, de estímulo, de exatidão, é a parte do professor no diálogo da universidade. Não lhe cabe apenas marcar deveres e cobrar-lhes o cumprimento; esses não são os momentos de sua presença. O seu momento é o da colaboração. O professor não é um juiz, nem um inquisidor, é um parceiro da conversatio. Toda conversação tem de ser longa - intervalo de silenciosos monólogos submersos - e se supõe que, nesse encontro, o professor tenha a consciência mais longa que a do discípulo, para instruí-lo, e tão generosa, que possa incorporá-lo. Digo propositadamente consciência, de acordo com as idéias que venho apresentando, para traduzir uma visão aperceptiva de que a ciência é apenas uma das partes.

          Isso significa que a cultura, no momento em que ela atinge a plena consciência de seus impasses, sem perder a consciência de suas responsabilidades, tem de se colocar nessa posição de lealdade profunda que é a da busca da verdade. É o momento supremo da objetividade.

          Ora, a cultura moderna está exatamente num desses momentos. Só a lealdade, uma decente e corajosa busca de entendimentos sobre ressentimentos, da verdade sobre as verdades, do Homem acima dos homens, por uma consciência inclusiva, abrangedora, séria, poderá salvar a nossa cultura. E salva-la-á na medida em que a universidade, transformada até certo ponto na consciência crítica e profética da sociedade, estiver à altura dessa missão. Nem facilidades demagógicas, nem eriçamentos fanáticos. Estamos em plena hora da fraternidade intelectual: de novos e adultos, como já foi assinalado, como também de todas as perspectivas, de todas as buscas.

          Essa fraternidade é amor, sem dúvida, na sua fonte. Mas o método que a articula, o aparelho redutor, a pesquisa fundamental que conduz ao logos, se encontra na ciência. Jamais, na civilização, a ética e a ciência precisaram tanto estar juntas. Depois dos grandes momentos de antítese - em que os impulsos morais e religiosos se impunham avassaladoramente, ou, de outro lado, só contava a ciência positiva, como assinala a história da cultura, chegou o momento da síntese. A Verdade supõe uma intenção fraterna, mas reclama um empreendimento de pesquisa. A moral, por seu lado, baseia-se no amor, mas é também uma consciência nova do homem em sua nova "aparição".

          No umbral da universidade se encontram os seus guardiães. Selecionam, filtram, aprovam o que por esse umbral deve passar. Dentro do muro, o guardião se vê perplexo pela enorme e quase disparatada quantidade de coisas heterogêneas que lhe cabe reunir na unidade de seu comando. Que é que se deve deixar entrar? É uma pergunta. Como arrumar o desconexo que está lá dentro? É outra pergunta. É uma tentativa de resposta, o que se contém nestas reflexões.


Durmeval Trigueiro Mendes
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.
Rio de Janeiro, v. 50, n. 112, p. 223-231,
out./dez. 1968. Com alterações feitas posteriormente pelo autor.