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A Universidade e seus problemas atuais

Discurso proferido ao transmitir o cargo de Reitor da Universidade
da Paraíba ao Ministro José Américo de Almeida.
Observa que a universidade é uma síntese de cultura, não
podendo abster-se do processo das mudanças sociais,
cabendo-lhe organizar o saber, além de afastar as barreiras
artificiais que isolam o povo de suas elites.

        

          A grandeza desta hora nos faz pensar que tudo que ficou para trás e está nas crônicas do nosso espírito foi uma longa vigília de preparação para um despacho triunfal.

          A Paraíba possui uma tradição cultural, representada por figuras ilustres no magistério secundário, na literatura, em tentativas escassas no domínio das ciências e das artes. Porém a cultura imperante entre as gerações mais antigas - com as suas muitas e naturais exceções - era a cultura transplantada, em moldes impostos artificialmente, sem autenticidade, portanto, e primando pelo intelectualismo eruditista e livresco.

          Apta para a ostentação fácil e discursadora que se comprazia em tertúlias e polêmicas estéreis e no gosto imoderado da retórica: tudo isso refletindo uma sociedade ainda estável e sem problemas, fundada sobre uma estrutura escravocrata que atribuía à aristocracia econômica e às classes liberais o privilégio de fazer literatura tantas vezes recreacionista ou diletante ou superficialmente política.

          O que tinha a nossa cultura de puramente intelectualista e formalista não deixava de ser, em parte, resíduo da mentalidade européia - que se desenvolvera a partir do Renascimento (a educação e a cultura consistiriam num "domínio de livros e de formas" - v. Paul Monroe, História da educação, p. 274); com a agravante entre nós, do autodidatismo que copiava os modelos sem a sua contextura inteiriça, deles restando muitas vezes fragmentos desarticulados ou os aspectos mais superficiais ou os mais puramente formais. Pareciam brilhantes - e muitas vezes lhes sobrava, de fato, o talento natural - mas a ausência da disciplina metodológica e de uma formulação orgânica e sintética do saber tornava a este um saber aparente e falso, embora capaz de empolgar a maioria despreparada. Muitos houve entre nós, repito, que escaparam a essas deformações: muitos inclusive que ainda vivem e produzem, e a quem reverenciamos como mestres autênticos.

          Por outro lado, as vocações intelectuais irrompiam, aqui e ali, poucas e solitárias, porque a cultura parecia só dever interessar a um grupo de privilegiados, ou só poder interessar a uma elite privilegiada. A cultura como algo de marginal na sociedade, como um domínio separado e autônomo, e não como um ideal geral e alicerce das comunidades realmente solidárias, orgânicas e democráticas - tal a concepção dominadora num mundo onde prevaleciam as discriminações aristocratizantes, no plano da inteligência. E onde a cultura era concebida como um luxo ou um privilégio ou um bem optativo, ao invés de um conjunto de valores conaturais com a vida comum, por eles enriquecida e elevada.

          Ora, passamos a ver depois que a teoria não é o oposto da prática, nem a cultura um patrimônio facultativo mas imperativo na vida real; e não representa o plano do artifício, do livresco e da superfetação, mas, ao contrário, a forma de vida autêntica, lúcida e humana, vivida com toda a extensão e riqueza de suas implicações e de seus compromissos.

          Inicialmente, pois, eram casos isolados de autodidatas que não dispunham de um lastro de valores culturais no seu próprio ambiente; não tinham aquela vivência cultural, nem podiam assimilar nas outras culturas a sua tessitura íntima e coerente, através apenas do esforço de erudição e de informação pessoal e direta, pois não se entende cultura desligada do contexto social e do quadro de valores vitais em que estamos mergulhados. Ora, a nossa cultura não refletia a realidade brasileira, para ser autêntica e orgânica; e a cultura adventícia não a apanhávamos como um todo, porque nossas condições peculiares nos permitiam nivelar-nos com ela vitalmente, nem o nivelamento intelectual era possível por falta de meios normais e sistemáticos de comunicação cultural. Ela aqui chegava fragmentada, conheciam-se alguns poetas e romancistas da Europa, uma ou outra corrente filosófica mais em voga, e com esses retalhos de erudição se enfeitava o nosso verbalismo. Cultura acadêmica, de salão, cultura que polemizava, que enchia de eloqüência as salas de aula, e de fraseologia latina desde os acórdãos dos tribunais até as colunas da imprensa.

          Porque lhe faltava autenticidade, faltava-lhe também o aspecto grave e definidor de toda cultura: a sinceridade, a consciência problemática, a inquietação, numa palavra, a necessidade.

          Depois, a comunicação fragmentária e esgarçada foi se enquadrando a moldes mais densos e sistemáticos, culminando o processo disciplinador com a criação da cultura universitária.

          Não estamos mais no domínio dos talentos que se sobressaíam, sem o amparo da cultura institucionalizada, em brilhantes improvisações ou superficiais eruditismos. Deu-se à inteligência o apoio do substrato cultural e da metodologia científica. Este é o maior tributo da mentalidade universitária. Da cultura individualista e incompleta, ligando-se, precariamente, a outros patrimônios culturais, cuja estrutura e plenitude nos escapavam, chegamos, com a evolução dos tempos e a marcha da coesão e da unidade social, a integrar-nos de forma institucional e definitiva na grande torrente da civilização e da cultura moderna.

          Creio que se pode julgar, como já manifestei certa vez, que, sob muitos aspectos, constitui o aparecimento da Universidade com existência legal e funcionando normalmente, o maior acontecimento ocorrido na Paraíba, desde muitos anos. Não é como resultado de um processo intensamente vivido em pouco tempo de maturação intelectual, mas também como promessa de novas conquistas.

          Não é só obra do tempo, assinalei, mas de coragem. Pois se as mais das vezes as instituições culturais surgem como remate natural de lenta evolução de forças amadurecidas pela expansão natural de seu dinamismo interno e imanente, no caso de nossa Universidade se verificou a intervenção da vontade realizadora, do fermento criador que acelerou o processo e disputou com o tempo de conquista quase vertiginosa do progresso espiritual. Não vou escurecer as deficiências com que se apresenta a Universidade nascente, a ausência da tradição cultural, o insuficiente adestramento de muitos mestres para a ciência pura, desvinculada das exigências profissionais, a inexistência de cabedais de que possa utilizar-se com seu patrimônio próprio e fruto do seu trabalho; a falta de uma sistematização cultural que ligue e harmonize, no mesmo nível de atualidade e universalidade, os vários campos do saber; falta-lhe a síntese humanística, o grau de plenitude, a contextura perfeitamente ordenada. Não é uma Universidade feita, mas em vir-a-ser. Porém cheia de virtualidades, de energia, de força empreendedora. Isto lhe outorga o direito de existir.

          Afirmei que a Universidade da Paraíba é um organismo que se desenvolveu celeremente, crescendo não só com as suas potencialidades naturais, mas fecundada por fermentos ativadores. Entre estes ressalta extraordinariamente a ação do ex-governador José Américo, cuja inteligência e sensibilidade, aliadas à oportunidade histórica de sua passagem pelo governo, lhe permitiram cumprir a sua missão de ser, na vida paraibana, um antecipador e um divisor de águas. Com a força de sua personalidade e do seu gênio, ele era capaz da originalidade criadora, suscitando um mundo novo, o mundo do futuro, verdadeiro líder social que condensa em si as vontades dispersas e as eleva no seu descortino e na energia do seu temperamento, impondo as transformações impostas pelo momento histórico. De modo que a fidelidade ao passado não seja a cópia obsoleta que pára o tempo nas formas ultrapassadas, mas a criação de valores novos, para que os velhos não pereçam.

          Foi com essa perspectiva histórica, que liga as gerações de antanho às do futuro, que José Américo promoveu o salto de uma cultura estacionária e rotineira que paralisara, no plano educacional, dentro do nível secundário, para uma cultura larga, ambiciosa e universalista. O ensino superior na Paraíba, como novo nível, uma escala nova, um traço diferencial, pela extensão, vitalidade e coordenação de iniciativas de seu governo e de particulares; como um conjunto com força e amplitude bastantes para se impor, para marcar o ambiente e a época, foi obra, inequivocamente, de José Américo de Almeida.

          De tudo se depreende que o processo de evolução cultural na Paraíba aprofundou, nos últimos anos, com um vigor surpreendente, os traços de nossa diferenciação e autonomia. E esse processo pode ser caracterizado por dois aspectos: de um lado, o amadurecimento espiritual, apressado, certamente, por circunstâncias estimuladoras; é o fenômeno a que Delos, referindo-se ao Estado, chamava "l'accomplissement de la vie intérieure"; por outro lado se acentua, evidentemente no mesmo passo, a nossa autonomização intelectual. Muito tempo esteve a Paraíba subordinada à influência intelectual de outros centros, sobretudo o Recife, considerado como a capital da Região. As circunstâncias históricas deram à ilustre metrópole essa projeção que, do ponto de vista cultural, se deveu sobretudo à Faculdade de Direito e ao Seminário de Olinda, fundado pelo Bispo Azeredo Coutinho. São influências, senão contrastantes, pelo menos distintas e complementares. A Faculdade de Direito se incorporava à tradição da cultura acadêmica e retoricista, criando o prestígio do bacharel, do orador e do letrado; enquanto Azeredo Coutinho, conforme assinala Capistrano de Abreu (Um visitador do Santo Ofício), "transformou as condições do ensino e, com este, as condições intelectuais da capitania" de Pernambuco, dando-lhe outro conteúdo, mais de ciência que de retórica, mais de observação dos fatos que de verbalismo eruditista. O prestígio e a influência da velha escola de Direito foi incomparavelmente maior e mais decisivo, inclusive por encontrar apoio nas linhas ancestrais do nosso ensino colonial e, como assevera o Professor Fernando de Azevedo (Cultura brasileira, p. 151), nos próprios traços característicos do brasileiro. Mas o papel revolucionário de Azeredo Coutinho foi tão notável que, sem ele, ainda é Capistrano quem o diz, "não surgiria a geração idealista de 1817". E a inconfidência mineira, segundo Gilberto Freyre, "foi uma revolução de bacharéis, pelo menos de clérigos, que eram uns bacharéis de batina, alguns educados em Olinda, no Seminário Liberal de Azeredo Coutinho. Seriam as duas revoluções pernambucanas, preparadas por homens do século XVIII: a de 1817 e a de 1824" (v. Fernando de Azevedo, p.151).

          É dos bacharéis, realmente, a grande influência. O caráter eminentemente plástico da carreira, como há poucos dias frisou em discurso o Magnífico Reitor da Universidade da Paraíba, Ministro José Américo de Almeida, permite conciliar tendências diversas e menos rigidamente profissionais; sobretudo no começo, à falta de certas escolas superiores, a Faculdade de Direito atraiu os que se interessavam pela cultura geral e desinteressada. "Nenhuma instituição de ensino superior, lembra ainda o ilustre mestre paulista, estava mais predestinada do que a escola de Direito a exercer essa função supletiva, não só pelo caráter mais filosófico dos seus estudos e pela maior aplicação das letras às atividades da carreira, como ainda porque, de todas as faculdades de preparação profissional, são as de Direito, pela própria natureza dos seus cursos, que põem a sua razão de ser, de preferência, no elemento cultural e não no elemento econômico e técnico, e desenvolvem uma fé mais robusta no poder espiritual, na virtude dignificadora da inteligência e nos valores morais."

          Sem falar de disposições conaturais à nossa cultura e às nossas origens, inclinando-nos para o liberalismo e o espírito democrático, a concretização desse espírito em formas institucionais, na política, no direito, nos estilos da vida pública e social, se deve à influência dos bacharéis do Recife e de São Paulo, para só mencionar os dois focos mais antigos e por isso mesmo de mais remota atuação. Por isso mesmo, no bacharel, reconheceu Sampaio Correia "um mágico que conseguiu se legalizassem pelos usucapiões, mansas e pacíficas as transmissões de terra, e que obteve de um punhado de homens atirados à aventura que reconhecessem o poder e a sabedoria do direito e, com ele, a estabilidade e a força orgânica do Estado. Se é às novas gerações que cabe reconstruir a experiência social, a consciência dessa responsabilidade só ocorreu no Brasil quando a juventude, agrupada nas Faculdades de Direito, se deu conta de si mesma e de seu papel."

          Fomos, todos nós do Nordeste, ao mesmo tempo beneficiados e tributários dessa influência. Pois o Recife se erigiu em centro espiritual contando com as correntes subsidiárias de todos os estados nordestinos que lhe emprestavam o seu contributo e a sua seiva para que a tradicional metrópole, capitalizando essas energias, pudesse distribuir, por toda a parte, a irradiação de sua cultura.

          Atingimos, agora, este cume que esperamos seja ultrapassado, no futuro, por outros mais alcandorados. Esta Universidade que agora começa a funcionar, com as prerrogativas da equiparação e, portanto, em toda sua amplitude, é um marco da era nova. A Paraíba manter-se-á unida aos grandes centros mananciais de sua cultura e até ampliará os seus contatos para além de todas as fronteiras, ambiciosa de valores humanos e universais. Depois de receber a cultura refletida, irá agora fazer a sua própria aventura, procurando acercar-se diretamente dos grandes tesouros intelectuais. Mas enquanto alarga os seus horizontes, e apaga fronteiras regionais em busca de um humanismo generoso e ecumênico, ela se volta sobre si mesma, procurando descobrir e reunir forças que a afirmem, que lhe dêem caráter pela projeção e acentuação de suas peculiaridades e de seu vigor original. Parece-me que toda cultura autêntica vive nesses dois impulsos: um procurando completar-se por assimilação dos valores estranhos, outro que quer afirmar-se pela autoconsciência dos seus próprios valores e pela intensificação de sua personalidade. Um movimento para fora e outro para o interior. Só aparentemente são movimentos antagônicos; pois, na realidade, não pode assimilar os bens exteriores o ser indiferenciado, destituído de marca própria para dominá-los e absorvê-los. Além disso, a cultura particularizada, regional, é valor positivo, elemento enriquecedor das demais; e muitas vezes caminha para chegar ao universal.

          O homem se realiza através dos homens, os diferentes tempos e espaços evidenciam explicitações multiformes da infinita riqueza original da essência humana.

          Creio ser este o sentido de uma Universidade da Paraíba. Tendo-a dirigido até agora, e vendo-a assumir, pela equiparação, outras perspectivas, ser-me-ia permitido manifestar, neste instante, as minhas esperanças no seu futuro; mais do que uma prestação de contas, balancear as idéias que me nortearam na curta passagem pela Reitoria e, estou certo, com mais amplitude e discernimento, não descontinuarão na gestão que esperamos por todos os títulos esplêndida, do Ministro José Américo de Almeida.

          A Universidade é uma síntese da cultura, conciliando aparentes contradições desta, englobando, dialeticamente, os opostos em que se extrema o processo cultural; tem de aliar o passado e o presente, o particular e o geral, o especulativo e o prático, a rotina e a criação, o aristocrático e o popular, o individual e o social. Tem de constituir-se, portanto, sobre uma unidade plástica e coerente, uma visão geral e harmônica, uma filosofia.

          O que lhe importa, antes de tudo, é a atualidade e a universalidade. A atualidade significa a comunicação plena com tudo o que permanece vivo no patrimônio cultural de uma época. O mergulho na sua espessura e nos princípios que a explicam e unificam.

          Não se trata do nivelamento artificial que aproxima os aspectos exteriores e apenas aparentes, mas de uma assimilação. Nem se exclui, doutra parte, o patrimônio cultural herdado do passado e cuja eliminação, nos dias atuais, é interpretada por Karl Jaspers (Ambiente espiritual de nuestro tiempo) como um dos fenômenos assinaladores da crise moderna. Insurgindo-se contra esse furor anticultural em relação à tradição histórica, assevera o ilustre filósofo alemão que "a transformação da substância espiritual só pode ser mantida por uma modalidade de recordação histórica que não pode ser reduzida a um mero conhecimento do passado, senão que é força vital em presença. Sem ela, converter-se-ia o homem em bárbaro. O radicalismo da crise de nossa época empalidece ante a substância eterna, em cujo ser adquire participação e recordação, como no imortal que em todo momento pode aparecer". Não se trata só de uma intuição compreensiva, mas de uma assimilação "que suscita a realidade do ser mesmo como em presença; primeiro na veneração, depois na medida dos seus próprios sentimentos e atos e, por fim, na participação em ser eterno" (p.191).

          O conceito de atualidade não coincide, pois, com o de modernidade. Nem adianta a Universidade incorporar tudo que é moderno mas só o que, passado ou presente, constitui, como diria Gasset, o sistema das idéias vivas que o tempo possui.

          Todavia, devemos repudiar também a atitude saudosista que se apega a formas ultrapassadas de culturas. Há uma espécie de tendência arqueológica, lembra Sertillanges (La vie intellectuelle, p. 37), um amor do passado que negligencia as dores atuais, uma estima do passado que parece ignorar a presença de Deus. Entre todos os tempos, existe um que praticamente supera a todos: o nosso. E noutra passagem, assevera o escritor francês: "Todo momento de duração nos concerne e todo século é nosso próximo, como todo homem; mas esta palavra próximo é uma palavra relativa, que a sabedoria providencial precisa para cada um, e que cada um, na sua sabedoria submissa, deve precisar também".

          No centro dessa filosofia está a convicção da historicidade do homem que se realiza no tempo. Permanece atrelado, ao mesmo tempo, à temporalidade e à transcendência, a um destino histórico e meta-histórico, presa, por igual, do relativo e do absoluto. A sua referência aos valores relativos configura a sua presença no tempo e a sua inserção no todo social, sucumbindo com este ao cabo de cada geração e de cada ciclo histórico cultural. O ser humano é assim um ser do tempo e do absoluto, da história e de Deus. Passa com os fatos do mundo sem que isso afete o seu comprometimento com o que há de irremovível, de absoluto, no fundo do seu ser. Liga-se à contingência do devenir amalgamado com ele, mas sem poder deixar escapar o seu conteúdo substancial através dessas linhas divisórias que o delimitam e isolam. É ao mesmo tempo um momento na sucessão do tempo que já não é o fim de cada instante, e o infinito que não se esgota no acontecer humano ou no acontecer histórico, porque os fluxos e refluxos de sua existência sempre voltam sobre ele mesmo, como para um centro de gravidade que não se aniquila, não se esvazia, não passa uma identidade criadora de compromissos permanentes cujas conseqüências não podem ser alienadas dele próprio, nem disfarçadas, nem diluídas, recaindo sempre sobre a solidão do seu ser, sempre olhando o absoluto que é a fonte de sua autenticidade e de sua fixidez essencial como pessoa e de sua perenidade como destino.

          Se a Universidade participa do processo histórico, deve participar também do processo social. Não partilhamos nem o historicismo nem o sociologismo; acreditamos apenas que mudar é muitas vezes um dever de fidelidade à natureza humana.

          A Universidade não pode abster-se do processo das mudanças sociais. Nos Estados Unidos, como assinala Counts (Como tentar pela escola a transformação social), se discutiu apaixonadamente se a escola deve atrever-se a participar na transformação da ordem social, e creio que o problema foi nitidamente formulado por Karl Mannheim (Liberdade, poder e planificação econômica, p.298): "Naturalmente, não se deve introduzir na escola as pugnas políticas, para que não desapareça a tradição democrática no processo de transformação; porém, quem negará que as escolas devem participar no processo da educação social que prepara um novo tipo de homem, que pode fazer frente às responsabilidades que nos impõem as novas técnicas da organização social, as mudanças na tecnologia e as habilidades? Quem negará que se a escola fosse um agente 'estático', uma torre de marfim contemplando do alto, sem perturbar-se, o fluir da vida, não tardaria em ver-se tão antiquada e fossilizada que seria considerada inútil? A escola moderna não tem outra alternativa que a de intensificar e ampliar seus contatos com outros tipos de atividade vital e com as instituições sociais".

          Há nas Universidades a tentação do conservadorismo, em grande parte justificável, pois, como depositária da herança cultural, assiste-lhe o papel de contribuir para a estabilidade do equilíbrio social. Tão de perto a estrutura escolar se relaciona com os valores fundamentais da personalidade, que não se admite esteja submetida, indiscriminadamente, ao fluxo das mudanças sociais. Mas, também é preciso evitar que se estanque na Universidade o entusiasmo da pesquisa, ou que se instale aquela mentalidade, lembrada por René Maunier, da antiga Sorbonne: "Dava-se aí aos quatro mais antigos doutores, designados pelo nome de Sénieurs, a missão de se opor a toda novidade". Ainda é Mannheim que preconiza: "Antigamente se considerava a escola como um centro de preparação para um ajuste imitativo a uma sociedade bem estabelecida. Atualmente pode-se considerar a escola não só como uma introdução a uma sociedade já dinâmica, senão como um agente das mudanças sociais".

          Quanto à Universidade, é esta a própria vocação universitária. É preciso que na Universidade haja lugar para todos e se trate de todos os problemas; que se aproximem assuntos diversos e pessoas diferentes para que se tornem semelhantes sem terem de renunciar às suas peculiaridades. A Universidade aqui é, pois, tanto do saber quanto do homem; pois se os saberes diferentes tornarem diferentes os homens, nada concorreria tanto para unir as pessoas quanto a aproximação de sua cultura.

          Cabe à Universidade organizar o saber, através de uma síntese em que cada especialidade conheça o seu justo lugar no contexto geral e não apenas se justaponha uma à outra, ignorando-se entre si, mas ligando-se reciprocamente pela consciência de sua integração. E foi a perda do sentido de unidade que nos conduzia no século XX a esse espetáculo incrível, segundo Gasset: "O da peculiaríssima brutalidade e agressiva estupidez com que se comporta o homem quando sabe muito uma coisa e ignora a raiz de todas as demais". "É mister reconstruírem os pedaços dispersos - dislecta membra -, a unidade vital do homem europeu", pontifica o grande espanhol.

          Mostrando que há necessidade de distinguir para unir, em Les degrés du savoir J. Maritain aborda, do ponto de vista metafísico, essa necessidade de síntese: "somente poderíamos mostrar a diversidade orgânica e a essencial compatibilidade das zonas de conhecimento, atravessadas pelo espírito neste grande movimento de procura do ser ao qual cada um de nós não pode colaborar senão por um pequeno fragmento e arriscando-se a desconhecer a atividade de seus companheiros ligados a outras obras fragmentárias, mas cuja unidade de conjunto reconcilia, apesar deles, no pensamento do filósofo, irmãos que se ignoravam. Sob esse ponto de vista, pode-se dizer, também, que a obra à qual a metafísica parece chamada será pôr fim à espécie de incompatibilidade de humor que a idade clássica tinha criado entre a ciência e a sabedoria" (Préface XI).

          Mas, como disse, não é só a compatibilidade do saber, senão também das pessoas, a natural movimentação do meio universitário permitindo o intercâmbio de idéias e, sobretudo, isto que tanto impressionara a Newmann (Origem e progresso das universidades): que em nenhuma forma de ensinamento pode haver tanta plasticidade, versatilidade, sutileza, acompanhando os meandros das curiosidades e das necessidades particularíssimas do aluno, como no ensinamento direto. Sempre se lança mão do velho método da instrução oral, da comunicação presente entre homem e homem; preferem o professor ao estudo; a influência pessoal de um mestre na iniciação do discípulo e, conseqüentemente, os grandes centros de reunião e de ajuntamento, que tal método de educação necessariamente traz consigo". E ainda: "livro algum poderá carrear o espírito peculiar, e as delicadas particularidades do seu tema, com a rapidez e a certeza que animam a simpatia de uma mente com outra, através dos olhos, da expressão, da tonalidade, da maneira, nas fórmulas casuais saídas de improviso e nos giros espontâneos da conversação familiar". "Os princípios gerais de qualquer matéria podem ser estudados em casa, num livro; mas o pormenor, a cor, o tom, o ar, a vida que a fazem viver em nós, temos que captar tudo isso daqueles em que já está vivendo" (p.9-10).

          Porém, a queixa veemente de Gasset, formulada há pouco, é sobretudo contra o que, no livro célebre, Rebelião das massas, denomina a barbárie do especialismo. Eis outros problemas das universidades. Entendendo constituir sua tarefa específica o ensino das profissões intelectuais e o incremento da investigação científica, a Universidade moderna só convencional e superficialmente dá atenção à cultura geral. Esta passou a ser a denominação de uma forma de conhecimento vaga, incompleta, com falsas ou superficiais generalizações - ou, por outras palavras, a maneira de ser superficial e divagante em todos os assuntos. Ao cabo, a cultura geral passa a identificar o talento de falar sobre coisas que não reclamam mais que talento, fora de toda sistematização e de todo conhecimento positivo. Ora, a cultura geral, ao invés disso, representa para o homem saber situar-se em face do Universo, recompor no plano do conhecimento a ordem essencial das coisas, saber o que se tem e o que se quer sem girar apenas em torno do puro imediatismo casualístico do dever cotidiano. Cultura, diz Ortega, "é o que salva do naufrágio vital, o que permite ao homem viver sem que sua vida seja tragédia sem sentido ou radical envilecimento". Não podemos viver humanamente sem ter idéias. Delas dependem o que façamos, e viver - para o filósofo do perspectivismo - não é senão fazer isto ou aquilo. Em tal sentido, somos nossas idéias (Missão da universidade, in Obras completas, v. IV, p.321). E noutro livro, O tema de nosso tempo, ele afirma: "cada vida é um ponto de vista sobre o universo", o que parece uma confirmação dessa posição fundamental. Outros atribuíram às idéias a função de por assim dizer reiterar a essência das coisas - intelectus est quodammodo omnia; e outros ainda assinalariam a sua falência, porque o Universo não seria problematização, mas mistério (Gabriel Marcel, Position et approches concrètes du mystère ontologique). São três tipos de humanismo. Mas, abstraindo-se o humanismo existencialista, o que prevalece para o homem consciente e a Universidade é a consciência do tempo que se vive, em sua plena atualidade e universalidade, e adquirir a noção exata de sua posição no mundo e das coisas que o cercam.

          Porém, a cultura moderna se acha em crise, exatamente por falta de repertório; assim, as gerações adultas não podem legar às novas gerações uma herança que represente a continuidade normal da tradição cultural. As suas convicções se tornam todas problemáticas, rompeu-se e fragmentou-se totalmente o conteúdo de nossa cultura: a educação tornou-se assim "insegura e difusa" ou puro tecnicismo sem conteúdo e querendo exigir um milagre da juventude que ela "cria por si e que os mestres não possuem mais", "que ela seja origem" quando normalmente ela deve ser beneficiária de uma cultura que apenas terá de modificar e adaptar. Jaspers vaticina o fracasso dessa tentativa: "Se se atribui à juventude uma carga falsa, tem-se de fracassar, pois o homem só pode advir surgindo na continuidade dos decênios e tornando-se na severidade pela sucessão de uma série de gradações".

          Em contraposição à visão geral, essa visão de totalidade, está o especialismo, a barbárie do especialismo. O novo bárbaro, afirma Ortega, é principalmente o profissional mais sábio que nunca, porém mais inculto também: o engenheiro, o médico, o advogado, o cientista. "Os grandes progressos da ciência e tecnologia preparam para dirigentes muitos especialistas que, do ponto de vista cívico-político, apresentam, com freqüência, incapacidades preparadas". Faltou-lhes "oportunidade de adquirir a compreensão de nossa situação humana e social e desenvolver a síntese cultural" (Mannheim, op. cit., p.310).

          O isolamento dos grupos no interior das sociedades é a primeira conseqüência do especialismo: além de outras, no plano mais estritamente educacional, o predomínio da instrução sobre a educação, a perda do sentido da obra total da educação, a complicação de sistemas, o conflito entre as exigências da cultura e a da utilidade e a redução do ensino geral, como bem assinalou na sua Sociologia Educacional o professor Fernando de Azevedo.

          Em suma, trata-se do conflito entre o humanismo e o tecnicismo agravado pela intolerância e pela estreiteza de humanistas e técnicos. Estes esquecem uma psicologia especial, moldada na segurança tranqüila dos seus métodos, na precisão matemática e recortada avessa a todas as dimensões da realidade e insubmissa às mensurações da ciência pura. Os humanistas, por seu turno, se apegam, muitos deles, a resíduos culturais de épocas ultrapassadas, identificam humanismo com o estudo das humanidades clássicas de modo que os gregos e os latinos, segundo a crítica de Beaussart, "aparecem não como homens de um tempo e de uma civilização dada, mas como tipos únicos da humanidade sobre os quais todos devem modelar-se, quando na verdade as humanidades clássicas, generalizadas hoje, pereceriam de sua própria generalização".

          É preciso, por um lado, estreitar-se os contatos que as técnicas e a ciência impõem com o "real imediatamente presente e vizinho", e, de outro lado, reduzir por uma alta cultura transcendente às particularizações científicas, "a desproporção entre a capacidade da inteligência e a complexidade dos problemas atuais". O de que realmente se precisa, porém, é de que as ciências sejam ensinadas da maneira mais viva e objetiva, para não produzirem aquelas idéias inertes de que falava Whitehead.

          Descobrimos assim, por baixo de muitas camadas superpostas, o fundo do problema: o humanismo. A idéia do homem, uma idéia dinâmica relacionada com o homem em devenir histórico e também com as suas metas transcendentes e absolutas.

          O humanismo autêntico, por outro lado, a verdadeira formação universitária é a que concorre para a comunhão social. Deve a cidade, a polis, ser rica de valores culturais, pela contribuição das instituições educativas e do próprio cidadão. É o exemplo da Grécia clássica: "Do mesmo passo que o estado inclui o homem em seu cosmo político, lhe dá ao lado de sua vida privada uma espécie de segunda existência, o bios politikós". Cada homem tem a virtude geral citadina, "a politiké areté, mediante a qual se põe em relação de cooperação e inteligência com os demais, no espaço vital da polis" (Jaeger, Paideia, p. 129-130).

É bem verdade que o homem não pode ser tragado pela cidade como desejaria uma Universidade fundada sobre os preconceitos sociologistas, de Durkheim a Marx. Uma escola é tanto mais democrática quanto mais flexível, mais apta a formar individualidades autônomas e criadoras. O novo ideal de personalismo democrata expresso pelo autor de Ideologia e utopia implica sempre uma dupla direção. Uma fomenta a socialização, e outra a individualização. Os interesses do indivíduo, à medida que estes vão surgindo de sua individualidade e do lugar específico que ocupam no sistema social, deveriam fomentar sua compreensão das necessidades da comunidade. Por outro lado, as exigências da comunidade jamais deveriam chegar a ser suficientemente poderosas como para dominar toda a resistência, pois uma tendência encaminhada a conseguir a conformidade possivelmente suprimiria a voz do eu, que é uma fonte dinâmica de criatividade humana.

          O humanismo moderno, em suma, tem de ser a superação de todas as falsas antinomias que dilaceram a nossa cultura. Tem de perder o medo da ciência que sempre foi, frisa Dubarle, uma educadora do espírito humano, uma educadora magnífica da autenticidade humana. Deve, outrossim, evitar as extrapolações da ciência ou o seu crescimento fora de um plano hierárquico, presidido por um princípio unificador e humanizante que englobe a própria ciência. O perigo dessa anomalia já fora denunciado energicamente por H. Bergson na sua conferência intitulada "La signification de la guerre", e depois, em 1932, dizia o ilustre pensador: "A humanidade geme, meio esmagada sob o peso dos progressos que fez. Ela não sabe, ainda, suficientemente, que o seu futuro está em suas mãos. Cabe, pois, a ela decidir, primeiro, se quer ou não continuar a viver; em segundo lugar, se se contenta de viver apenas, ou não queira, de preferência, fazer o esforço necessário para que, também neste nosso planeta refratário ao bem, se cumpra finalmente a função essencial do universo, que é uma máquina para formar deuses".

          Se o humanismo das Universidades deve aproximar todas as formas de conhecimento, e anular os falsos antagonismos no campo da cultura, cabe-lhe também afastar as barreiras artificiais que isolam o povo de suas elites.

          É um assunto delicado e complexo. Força é convir que a democracia é o regime da inteligência, ou seja, aquele que confia na capacidade dos indivíduos de oferecer contribuição valiosa à tarefa de promover o bem comum. Já houve líderes no Brasil - lembra o Professor Djacir Meneses (Elites agressivas) que aconselharam a não ensinar o povo a ler para que não ficasse sob influências perniciosas lendo propagandas subversivas, desadaptando-se do trabalho rural etc. "Cabe aos intelectuais" - acrescenta, com excessiva ênfase no papel democratizante da ciência - "cooperar nessa obra de esclarecimento político, se quiserem realizar a democracia pelo único caminho seguro e verdadeiro: pelo caminho apontado pela ciência".

          Creio que, ao lado de observações exatas, se depreendem alguns defeitos na esquematização de Djacir Meneses. Como quer que seja, temos de ficar eqüidistantes entre a massificação que implanta o domínio do homem-massa, com a depressão das minorias qualificadas, e a aristocratização do saber, produzindo uma casta inacessível: o povo. Chegou-se a dizer que a Universidade existe para o homem médio, que representaria a sua unidade de medida.

          O Professor Anísio Teixeira, analisando o problema à luz da crise brasileira, julga que, no plano educacional, deve haver a fusão dos dois sistemas escolares - o do povo e o das elites. É o que se vem realizando em todos os países. "Na América do Norte, pela organização de um único sistema público de educação, com extrema flexibilidade de programa e a livre transferência entre eles. Na Inglaterra, pela escada contínua da educação, pela qual se permite que o aluno, seja lá qual for a escola que freqüente, possa ascender a todos os graus e variedades de ensino". Pois o que existe de aristocratizante, no ensino brasileiro, não é a falta de oportunidade para todos, é o seu conteúdo. Tal a natureza da educação e do adestramento escolar, que os seus beneficiários só se sentem aptos para ocupar funções que inelutavelmente os situam na aristocracia. Não há uma "educação do fazer" relacionada com as profissões que se baseiam no trabalho manual ou mecânico ou em outras formas de atividade e de conhecimento não-acadêmico. Na Inglaterra, há algum tempo se formulou uma sugestão, através do publicista Hodges, no sentido de que as escolas técnicas e outras instituições do mesmo nível "deveriam chegar a ser núcleos de um novo tipo de universidade popular, equipados tanto para preparar os estudantes para uma gama mais rica de vocações, como para que esses centros desempenhem uma parte ativa nas atividades sempre mais amplas da educação dos adultos".

          Não pode a Universidade, também, deixar de tomar posição entre o universalismo e o regionalismo. Parece-me importante que se perca o complexo de inferioridade contra o que se afigura a muitos uma forma apoucada de cultura: a regional. Primeiramente, porque o universal é uma categoria teórica que, concretamente, se, de fato, ostenta valores de grande amplitude, por outro lado o que mais freqüentemente representa é a síntese das diferenças regionais em cujas peculiaridades e viço original ela se nutre. Porque só há riqueza do que é vivo e, pois, particular. O que vale, antes de tudo, não é o prestígio das culturas consagradas, mas o prestígio do homem, onde quer que se encontre a sua substância inumerável que, aqui e acolá, pode oferecer novas zonas de sensibilidade, de experiência, de tradição, de espiritualidade, ainda não catalogadas na grande ciência mundana e cosmopolita. O que vale é o vivo, o original, as inúmeras explicitações que, no espaço e no tempo, revelam a infinita virtualidade do homem. Importa, outrossim, perder o fetichismo do exótico ou do apartado de nós: como se quiséssemos reduzir a ciência à expressão de comportamentos ou de fenômenos estranhos a nossa experiência comum; ou se a ciência fosse, como o milagre, tanto mais belo quanto mais raro. Esta deformação do espírito resulta duma mentalidade livresca, que prefere, à realidade original, a superfetação das teorias, e atribui à inteligência a função de criar valores autônomos, mais precisos do que os valores reais; um deplorável e equívoco esnobismo intelectual. É preciso perder o culto idolátrico de formas consagradas de cultura como se fossem as únicas que pudessem traduzir a vida do espírito.

          Temos nós outros diferente experiência cultural a realizar: somos um país que se descobre a si mesmo e, portanto, está abrindo caminho para sua interpretação ou revelação. Estamos numa fase de exploração vital, enquanto a Europa se coloca no plano da decantação intelectual, a sua matéria cultural não mais constituída de experiências virgens, mas de um ideário, que apenas se transforma em novas formulações. É o plano do formalismo lógico ou conceitualista, enquanto o nosso é o da irrupção vitalista. Por isso, são exploradores e descobridores ainda os nossos grandes sociólogos e romancistas, muito mais que teoristas do homem ou da sociedade. Ou, melhor dizendo, os nossos melhores sociólogos têm muito de romancistas, e os melhores romancistas muito de sociólogos, tanto convizinham a sensibilidade e a razão científica diante de um mundo novo que a ambos desafia e lhes oferece idéias e emoções: construir cientificamente o conhecimento do Brasil é construir um mundo poético.

          Mas, quando o regional deixa de ser o patrimônio de valores originais - oferecido à exploração intelectual ou à sensibilidade especial para apreender e refletir valores universais - para tornar-se uma espécie de inteligência autônoma, isolada; e deixa de ser oportunidade de revelações que virão incorporar-se à cultura ecumênica, para constituir-se no campo de vaidade provinciana, constatamos, então, estar ainda no plano dos instintos inconscientes, e não no nível da inteligência autêntica, que não conhece fronteiras. Esse provincianismo perro cria uma autonomia artificial, que oficializa os erros em verdades pelo poder arbitrário da inteligência, segregada de toda tradição espiritual; empobrece as idéias, despojando-as do seu conteúdo formado ao longo de sedimentações e aderências culturais; é, em suma, a antítese da Universidade.

          Evidentemente, convém logo assinalar, a cultura regional evita também a imitação, pois o que mais valoriza e fortalece a Universidade é ser genuína, castiça, autêntica. A Universidade deve ser algo vivo que resume, aclara e enriquece a vida.

          E ninguém mais digno e mais apto do que Vossa Magnificência, Senhor Reitor da Universidade da Paraíba, para conferir-lhe esse destino. Devolvo às suas mãos augustas de timoneiro, de tantas experiências e glórias aureoladas, o comando que me foi entregue, quando de sua passagem pelo Governo, e no qual fui conservado pela honrosa confiança do Senhor Governador Flávio Ribeiro.

          Depois de um ano de trabalho realizado, com entusiasmo, e sem qualquer compensação material ou remuneração, deixo a Reitoria desta Universidade em condições de realizar plenamente os seus objetivos agora assegurados pelas prerrogativas de equiparação.

          Tivemos a honra de orientá-la desde os primeiros passos. Promovemos, de início, o congraçamento de suas várias unidades integrantes, harmonizando pontos de vista diversos e homologando as justas reivindicações de todas elas. Presidimos à elaboração da lei e do estatuto que a disciplinam, instalamos a Reitoria, aparelhando-a dos serviços essenciais até a equiparação. Empregamos todos os esforços para a liberação de suas verbas, inclusive através de contatos diretos com as autoridades competentes. Por último, foram as providências iniciais visando ao planejamento da Cidade Universitária, para que nada se faça sem uma organização racional. Entre essas providências convém destacar a vinda à Paraíba do Engenheiro Horta Barbosa, responsável pela construção de obra congênere na Capital da República.

          A atuação da Reitoria tinha de restringir-se apenas ao plano da colaboração, nunca recusada a qualquer Faculdade, e sempre aberta aos estudantes, porque não possuía ainda autoridade efetiva para exercer uma ação diretiva eficaz, antes da equiparação. Não faltaria quem se molestasse com uma intervenção que não tinha cobertura legal, assecuratória do vínculo universitário. Mas, malgrado essas limitações intransponíveis, jamais faltou, para os que a desejavam, a cooperação cordial da Reitoria, sobretudo nos empreendimentos culturais.

          Por outro lado, fiéis ao espírito sadiamente regionalista atrás preconizado, realizamos, sob os auspícios da Universidade, um curso de introdução ao Estudo da Civilização Nordestina, com a participação de estudiosos de todo o Nordeste, além de outros cursos e de inúmeras conferências que tiveram o patrocínio da Universidade. Sempre com o propósito de contribuir para o nosso progresso cultural, criando um clima geral, não somente escolar, que propiciasse o desenvolvimento às próprias instituições universitárias, pela expansão além dos seus currículos, da curiosidade em torno de problemas e debates, através dos quais esses currículos se revitalizam e entram em conexão com a vida social.

          Mas, sobretudo, Senhores Professores, agimos sempre com lealdade e decência. Seja-nos permitido afirmar, sem imodéstia, que conservamos o nosso estilo habitual na função pública: encarar objetiva e altaneiramente os problemas - essa firme e sincera compenetração nos impedindo de desviar-nos para os acidentes marginais, ou nos amesquinhar-nos nas preocupações subjetivas que restringem a interesses medíocres as grandes e impessoais exigências do bem comum.

          Agora, só me resta bendizer a Universidade da Paraíba pela honra de ter merecido esse Reitor!

          Bendita a terra pequenina que os seus grandes filhos, descendo do pedestal, não se apoucam em ajudar e engrandecer.

          Vossa Magnificência, Senhor Reitor, possui em grau eminente todos os dotes para esta investidura; com toda a sua cultura intelectual, que lhe torna familiares as idéias gerais e sua sensibilidade e toda paixão pelo drama local, pela vida que lhe está diante dos olhos. Não se pode dizer até onde a sua inteligência é sensibilidade, ou sua sensibilidade, inteligência; ambas se fundem numa compacta unidade em que só domina a vibração humana e a intuição da vida. Não conheço ninguém com essa força natural - um instinto que aliciou o talento e a cultura, para perceber, julgar e prever. É que em ninguém como em Vossa Magnificência, a cultura deixa de ser acadêmica e formal para tornar-se, como deve, a aliada de uma personalidade rigorosa que tem as suas próprias visões e sente a realidade antes que se transforme em categorias mentais.

          Tudo o que faz é assim com a alma toda. Com essa intuição poética da realidade, antes que ela fique recoberta pelos véus do convencionalismo, da rotina e da burocracia. Administrar para Vossa Magnificência é um ato de vida. É tocar com a alma a nudez dos problemas com a sua expressão humana. Como toda grande personalidade, a sua apresenta contrastes surpreendentes, que surgem até no estilo e na obra do escritor; tem-se a impressão de atingir-se a grandeza através de pequenas coisas, de palavras ou gestos comuns, de repente transfigurados pelo grande artista do verbo e da ação, na sua simplificação profunda e dramática. Conhecer a grandeza e a realidade das coisas simples e vizinhas a nós, universalizar o particular, magnificar o detalhe, reconhecer o homem - na sua formidável importância - onde quer que se encontre, é próprio do grande artista que no seu mais nobre sentido é antes de tudo Vossa Magnificência.

          Ao transmitir-lhe, neste instante, o cargo de Reitor da Universidade da Paraíba, associo ao dever protocolar uma grande e sincera alegria de amigo.

Durmeval Trigueiro Mendes
In: Concepção do educador e da universidade.
João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1988. p.21-40.