Idéias filosóficas fundamentais do pensamento educacional de Durmeval Trigueiro
Terezinha Accioly Corseuil Granato
Professora Titular da Faculdade de Educação / UFRJ

          Fundamentar o pensamento educacional de Durmeval Trigueiro Mendes, localizando-o em correntes contemporâneas da filosofia da educação seria trair uma característica predominante de sua obra, a sua profunda originalidade. Sem ser um eclético, ao propor seus temas, refletia sobre eles em profundidade, fazendo uso de categorias do pensamento filosófico, sociológico e político contemporâneos - com grande desembaraço, devido a sua ampla cultura -, sem perder, porém, seu próprio itinerário intelectual, sempre voltado para a construção de uma autêntica filosofia da educação brasileira.

          A preocupação em não reforçar dependências culturais é uma constante em seus trabalhos, que representam um esforço permanente de busca e de elaboração da identidade de nossa cultura. Sua obra tornou-se um apelo a educadores e educandos para que se engajem nesse processo permanente de constituição de um pensamento educacional brasileiro, político e pedagógico, representativo do poder pelo saber, da articulação da paidéia com a politéia.

          Grande é a responsabilidade que nos foi atribuída de fazer a síntese de suas idéias filosóficas fundamentais, tendo em vista o espaço e tempo limitados de que dispomos. Não temos, pois, a pretensão de esgotar o assunto, mas apenas de apresentar contribuições para o conhecimento de aspectos essenciais de sua obra.

 

Caracterização geral de seu pensamento

           Não há exposição linear em sua produção intelectual. Em diversos períodos de sua atuação como professor universitário, como pesquisador, como homem de ação, volta aos mesmos temas para um maior aprofundamento, não anulando suas colocações anteriores, mas ampliando-as e enriquecendo-as com novas perspectivas.

          A postura fenomenológica e a abordagem dialética perpassam toda sua obra, sem se excluírem, mas complementando-se, conforme a natureza dos problemas tratados. Desde o artigo "Fenomenologia do processo educativo", publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, n° 134, em 1974, evidencia a necessidade de desvendar as intencionalidades do processo educativo, ótica que não se identifica com a fenomenologia das essências de Husserl, mas que pode ser vista como um recuo para o pensar e apreender as significações do ato educacional a partir de sua concretude existencial. A busca da intencionalidade radical da educação permanece em seus trabalhos, de modo especial no texto "Subsídios para a concepção de educador" produzido por solicitação do Departamento de História e Filosofia da Educação, como contribuição sua para a reestruturação dos cursos de Pedagogia e Licenciatura da Faculdade de Educação da UFRJ.

          As categorias dialéticas do pensamento Durmeval Trigueiro as usa predominantemente para fazer a critica ao sistema educacional brasileiro, caracterizado pela visão sistêmica e pela tecnocracia.

          Opõe o saber sistêmico ao dialético, pois, embora ambos constituam saberes da totalidade concreta, considera a visão sistêmica como acrítica, pela internalização passiva de valores, por ser explicativa da funcionalidade da realidade constituída e por procurar recuperar a totalidade social corrigindo distorções das partes. Caracteriza a visão dialética, ao contrário, como crítica, por conscientizar valores articulados em uma totalidade concreta, mas também histórica, buscando o sentido pelo qual as estruturas se organizam, suas intencionalidades, procurando compreender o sentido do "devir", para reconstruir essa mesma totalidade.

          Dialética do concreto, sem a menor dúvida, mas que não se identifica com a proposta marxista, pois Durmeval Trigueiro Mendes tem como preocupação constante a construção de uma nova sociedade cuja meta prioritária seja "articular a subjetividade e a objetividade, incorporadas no trabalho e na práxis". ("Anotações sobre o pensamento educacional no Brasil", 1987, p. 495). Sua proposta é a de uma educação democrática-socialista, fundamentada em um saber radical: - "saber dos valores, encarnados nas estruturas sociais e culturais, acionadas pelos sujeitos históricos" (Filosofia da Educação Brasileira, 1985, p. 118).

          Ao analisar o sistema educacional brasileiro, evidencia o primado da "razão técnica" sobre a "razão pura", sobre a "razão fenomenológica" e sobre a "razão dialética", na elaboração de uma "lógica de meios" que se converte em uma lógica de ocultação de valores, ao considerar irrelevante até mesmo o problema dos valores.

          Assinala como fator agravante da crise brasileira a ausência de propostas claras do governo sobre educação que estejam integradas com projetos elaborados nas instituições educacionais por educadores, filósofos e cientistas, o que determina a dissociação entre processo decisório e processo reflexivo, a desarticulação entre poder e saber.

          Ao examinar o projeto oficial da educação brasileira, demonstra a não existência não só de uma filosofia da educação brasileira, mas também de um projeto político brasileiro, o que considera conseqüência da situação de dependência econômica, política e cultural do país. Em decorrência, emergem contradições entre as propostas formais e a realidade efetiva, bem como a dissociação entre as dimensões política, econômica, cultural e pedagógica.

 

Projeto educacional

          Seu projeto educacional democrático apresenta um conjunto de diretrizes que passaremos a examinar:

          a) Propõe a volta da filosofia ao ensino brasileiro e o fortalecimento das ciências humanas para possibilitar "uma reflexão radical da consciência integrada na práxis" (Filosofia da Educação Brasileira, 1985, p. 117), desmistificadora da sociedade atual e instauradora de uma nova cultura, baseada em uma "nova ética" - para Durmeval Trigueiro, usando suas próprias palavras, "ética de verdade, de justiça e de amor" (idem, p. 117).

          b) Considera necessário o incentivo a novas linhas de ação criadora fora do sistema oficial, representadas por instituições sociais e grupos culturais. Entre as instituições sociais, dá particular importância à ação da Igreja, mobilizada pela Teologia da Libertação. Entre a multiplicidade de grupos culturais, assinala a importância dos artistas, pois vê a obra de arte como a "reconquista da realidade" (Filosofia da Educação Brasileira, 1985, p. 105), no espaço de liberdade e invenção próprio do artista.

          Essas novas alternativas culturais, Durmeval Trigueiro as denomina "instâncias intermediárias entre a particularidade e a totalidade" (idem, p. 115), a inserção do subjetivo no objetivo - o que constitui um dos temas recorrentes de seu pensamento. Para elucidá-lo, vamos recorrer a suas reflexões epistemológicas.

          Afirma que são as ciências sociais que proporcionam o paradigma para a compreensão do sentido das ciências exatas e das ciências da natureza. Nas ciências formais, como, por exemplo, a matemática e a física, vê a intencionalidade radical enraizada nos objetivos sociais, que são revelados pelo sujeito na práxis, mediante os valores e finalidades que busca efetivar. Atribui, pois, às ciências formais e às ciências da natureza, o caráter de historicidade, cujo sentido só é evidenciado se incorporado às ciências sociais e humanas.

          Dentro deste ponto de vista epistemológico, a linguagem assume papel extremamente importante de síntese entre o objetivo e o subjetivo, entre o consciente e o inconsciente, entre o racional, o irracional e o transracional. A linguagem, a seu ver, não é pura construção da razão, nem expressão de uma subjetividade desarticulada da realidade. A linguagem carrega em si os dois pólos articulados de nosso ser: o objetivo e o subjetivo, o racional e o irracional, nós e os outros, a essência e a existência; em outras palavras, a significação da existência como projeto. Ao contrário de Lévi-Strauss, admite que "o sujeito social e histórico é capaz de alterar e multiplicar seu desempenho de acordo com as circunstâncias, pessoais e sociais, um inacabado que incessantemente supera os atuais acabamentos" ("Subsídios para a concepção de educador", 1987, p. 3). Considera o grande equívoco do estruturalismo a ênfase excessiva que dá ao poder estruturante do social, minimizando a atuação do indivíduo, do sujeito, dotado entretanto de consciência, de criação, do poder do imaginário, sobretudo quando vinculado a grupos e a instituições.

          c) Voltando ao projeto educacional de Durmeval Trigueiro Mendes, onde a inserção da subjetividade na objetividade representa instância tão importante, resta esclarecer que o incentivo aos grupos culturais criativos deve ser feito integrando-os com a Universidade. Segundo suas palavras "a cultura viva e real está dentro e fora da Universidade" (Filosofia da Educação Brasileira, 1985, p. 119). Por esta razão, é na universidade crítica e pluralista que se efetiva a articulação entre saber constituído e saber constituinte, em um esforço de síntese a que já se referiu a Profª Maria de Lourdes Fávero, síntese que engloba em si as contradições da sociedade, incorporando-as em uma nova proposta coerente, proposta ao mesmo tempo filosófica, política e pedagógica, que assimila todas as manifestações da cultura erudita e popular.

          Elucida a natureza da dialética permanente entre saber constituído e saber constituinte, mostrando que o poder representado por estadistas, políticos e administradores, detentores do processo decisório, necessita de informações, análises e dados, fundamentados na pesquisa, nos estudos e na reflexão de cientistas e filósofos. É o saber constituído, codificado, acessível ao poder político. É necessário, porém, que cientistas e pensadores ultrapassem o contingencial, é necessário que desenvolvam permanentemente a investigação e reflexão enraizada na problemática do concreto para, usando suas palavras, "produzir a fertilização do conhecimento para a sociedade e para o Estado" ("Subsídios para a concepção de educador", 1987, p. 19). Trata-se da elaboração contínua de um saber "in fieri", nunca acabado, saber constituinte que possibilitará a efetivação da simultaneidade e diacronia entre poder e saber.

          É nessa reconstrução progressiva de cultura como um todo que situa a interação permanente entre educador e educando. Vê o educador, no sentido amplo, usando sua terminologia, caracterizado pela função do "agir", que mobiliza fins, valores e objetivos e pela função do "fazer" , que modifica o homem concreto. O professor, como educador profissionalizado, domina um "fazer de saber", de ensino e pesquisa, onde "a compreensão lógica do conhecimento está direta ou indiretamente vinculada às duas dimensões do fazer e do agir no contexto social" (idem, p. 1). A relação entre professor e aluno é, pois, um tipo de interação na qual o saber constituído, mas provisório do professor, é primeiro experienciado pelo aluno para ser depois teorizado. É o momento da interrogação, da problematização, da descoberta e da invenção, no qual saber constituído e saber constituinte se articulam dialeticamente entre professor e aluno.

          Concluindo, convém lembrar que a proposta de Durmeval Trigueiro Mendes, de diversificação e unificação da cultura dentro e fora da Universidade, constitui para ele a construção progressiva da Filosofia da Educação Brasileira, para a qual solicita a colaboração de todos nós, professores, alunos e representantes da sociedade como um todo. Somos, cada um de nós, pois, responsáveis por este empreendimento que deixou para nós como um desafio e que constitui uma missão a cumprir.

 

Referências bibliográficas

MENDES, Durmeval Trigueiro. Fenomenologia do Processo Educativo. Revista Brasileira de Estudo Pedagógicos. Rio de Janeiro, n. 134, abr./jun. 1974, p. 140-172.

___. et alii. Filosofia da Educação Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 50-133.

___. Subsídios para a concepção de educador. Texto mimeografado para o Departamento de História e Filosofia da Educação da FE / UFRJ. Rio de Janeiro, 1987, 19 páginas.

___. Anotações sobre o pensamento educacional no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, n. 160, set./dez. 1987, p. 493-506.


In: Durmeval Trigueiro Mendes - filosofia política
da educação brasileira.
Rio de Janeiro: UFRJ / FUJB, 1990. p.79-86.