Autonomia de pensamento:
o legado de Durmeval Trigueiro Mendes

Clarice Nunes
Professora Titular da Faculdade de Educação / UFF


         Conhecer Durmeval e tê-lo como professor, companheiro de trabalho e amigo foi um privilégio que desfrutei desde 1975, quando o conheci no curso de pós-graduação do IESAE da Fundação Getúlio Vargas.

         Ao vê-lo e ouvi-lo pela primeira vez, ainda esse ano, como professor de Filosofia da Educação Brasileira, surpreendi-me com suas contundentes críticas à gestão da Universidade, com o vigor de seu pensamento que me sacudia, assim como a toda geração da qual faço parte: a geração AI-5.

         Travava, a partir daquele momento, contato com uma vocação intelectual que percebia a pós-graduação em educação enquanto compromisso com a prática da produção científica, um estímulo à investigação nova e criativa e uma responsabilidade assumida com o pensamento educacional brasileiro e o processo de democratização da nossa sociedade e da nossa escola.

         Não foi fácil meu convívio com Durmeval. Explico-me.

         Minha incipiente formação pedagógica, esvaziada de conteúdos substantivos, enfrentava uma densidade de reflexão que me obrigava a esforços de disciplina e estudos intensivos e crescentes. O pensamento de Durmeval me impelia a uma busca na qual me encontro até hoje: abrir-me à realidade brasileira, aos seus limites e às suas possibilidades, enfrentando a educação como um desafio político, lacerado pela conjuntura na qual está mergulhada.

         A exigência de Durmeval me incentivou a trabalhar arduamente na minha dissertação de mestrado. Como meu orientador foi crítico severo e, ao mesmo tempo, de uma tolerância admirável, ao me permitir vôos e tateios que grande significação tiveram no meu processo de aprender a viajar por outros pensamentos, construindo meu próprio ponto de referência, errando e, frutiferamente, avançando dentro e além do movimento de expansão da minha própria personalidade. Durmeval foi paciente com a minha teimosia e me mostrou, de uma maneira delicada, como só ele sabia fazer, as minhas deficiências. Quantos livros me emprestou! Quantas leituras atentas e indicações minuciosas fez dos meus ensaios, ainda cambaleantes, de mestranda fascinada com a possibilidade de crescer intelectualmente.

         Lembro-me de que agradeci a Durmeval, na defesa da minha tese, a autonomia com que ele havia me permitido viver o processo de elaboração da dissertação e defender posições e idéias algumas vezes contrárias às suas. Sua generosidade me mostrava que só há dignidade pessoal e intelectual quando combatemos o sectarismo e procuramos não a erudição, mas um "saber orgânico", que apreenda e explique a realidade histórica em suas contradições e em seu movimento real.

         Hoje percebo que Durmeval me proporcionou mais do que pretendia ou imaginava. Como professor ele me ensinou que a liberdade de pensamento não é pensar o que aprouver, mas pensar numa certa direção, com determinadas finalidades, o que viabiliza a discussão, isto é, a troca de experiências, o exame dos vários aspectos de determinado problema, a chance de desenvolver a capacidade de entender as dificuldades dos outros e agir sobre elas.

         Nesta relação pedagógica, na qual Durmeval não se impunha, mas se colocava como ponte entre a minha experiência vivida e o diálogo que eu buscava construir com o conhecimento produzido e em elaboração, ele foi mais que professor. Foi educador, prendendo-se ao vértice da filosofia, da ciência e da arte. Nele fundiam-se estas múltiplas perspectivas que acolheram as minhas dúvidas e me mobilizaram como sujeito da minha própria trajetória.

         Durmeval, como artesão do saber, infundiu no meu pensamento suas marcas, marcas construídas na práxis da aula, do seminário, do texto, da pesquisa. Revelou-me a sua experiência, a sua cultura, a sua compreensão de que a ação só é eficaz quando muda a consciência - a própria e a dos outros. Com um toque firme e comedido empurrou-me para o mundo, fazendo com que eu aprendesse a me mover, nele, com uma consciência maior das suas significações, dos seus impedimentos e, sobretudo, das suas possibilidades. Revelou-me, na medida do possível, as desilusões do estadista, a esperança do filósofo e cientista, a coragem do pesquisador e do cidadão.

         Aos poucos, e de uma maneira sutil, já era meu amigo. Relembrar essa amizade, neste momento, é de alguma forma pensar essa experiência, tentar decifrá-la e decifrar-me nela.

         A ausência de Durmeval, hoje, permite que eu reavalie momentos, aparentemente tão corriqueiros do nosso convívio, na sala de aula, nos corredores, nos encontros casuais pela rua, nas visitas familiares. Certos momentos foram carregados de emoção, como quando ele me esboçou a imagem da consciência como horizonte aberto, ou quando, chorando, demonstrou-me a dor e o cansaço que a fragilidade da sua saúde lhe ocasionava; o desalento de, paradoxalmente, enquanto pensamento que buscava uma expressão autônoma, encontrar-se, de certa forma, dependente dos remédios, dos cuidados médicos e familiares.

         Depositava, então, nas minhas mãos a aspereza da vida, pois de asperezas a vida é feita, e o sentimento do mundo, um mundo que, em certo sentido, o ofendeu e o humilhou, mas que ele venceu como batalhador incansável. Não um herói, mas um sobrevivente. Às vezes me chamava de Clara guerreira e ria com muita graça. Às vezes me surpreendia com talentos impensados. Como desenhava e pintava bem à guache! Nunca me faltou com o apoio nas horas difíceis. Sua vida constituiu para mim um exemplo de luta contra a mediocridade, a violência e o desrespeito ao ser humano.

         Como dizia Guimarães Rosa, "as pessoas não morrem, ficam encantadas". Neste meu exercício de desencantar Durmeval eu o reencontro na minha sala de aula, quando discuto com os estudantes da graduação os problemas da educação brasileira; no meu projeto de dissertação de doutorado; quando discuto a constituição da hegemonia dos intelectuais nos anos vinte e trinta; na roda de amigos quando falamos dele com carinho e afeto.

         Gostaria de ressaltar a contribuição de Durmeval na elaboração de um pensamento educacional brasileiro que teoriza sobre a prática que se oferece aos dilacerantes problemas, movimentos e alternativas educacionais existentes em nossa sociedade.

         Neste sentido, caminho nas clareiras abertas por Durmeval quando afirma que o Estado não quer, nem nunca quis, resolver o problema educacional brasileiro, a despeito da retórica; quando expõe que a educação do povo, ou é um gesto romântico, ou é uma política realista e, enquanto tal, precisa alcançar níveis de generalidade e de qualidade que a transformem num efetivo instrumento de promoção sócio-econômica, política e cultural; quando denuncia o desvio tecnocrático do Estado ao opor a idéia de eficiência à de participação; quando defende a concepção de que a educação é um projeto simultaneamente político e filosófico, cujo entendimento não cabe exclusivamente no âmbito da racionalidade científica; quando enxerga que a eficácia teórica de que se reveste a ciência é condição indispensável para uma política da educação, mas insuficiente até que a ciência venha explodir na decisão política.

         A minha paixão pela investigação histórica, cultivada na experiência docente e na pesquisa, muito deve a questões levantadas no debate mantido com Durmeval: o que são, exatamente, a sociedade e a educação brasileira de nossos dias? Em que aspectos nossa sociedade e educação se distinguem daquelas de há trinta, quarenta anos atrás?

         Durmeval me mostrou o valor das análises substanciosas e coerentes que revisem os conceitos tradicionais da educação brasileira com o apoio de fontes pertinentes e, sobretudo, com o intuito de desmistificar o pedagogismo e o legalismo desfocados dos problemas centrais do sistema educacional. Alertou-me, também, contra o risco de utilizar quaisquer categorias do pensamento, seja dialético, funcionalista, estruturalista (ou outros) afastadas da situação brasileira. Ainda, esclareceu-me quanto ao efeito complicador que apresenta o projeto individual institucional (de um educador, de um filósofo ou de um cientista) e os projetos do governo que, por hipótese, convergiriam num projeto nacional.

         Do ponto de vista do ensino, Durmeval sempre lembrou que a autonomia do pensamento se constrói através da luta contra a alienação da Universidade, que se manifesta, entre outras coisas, pelo seu desinteresse e inconsciência em face da educação como processo social global, em que ela própria está inserida como uma das instâncias mais decisivas e, na qual, a criação do educador está sinalizada por um ritmo denso, que vence a inexperiência, entendida não como questão de tempo, mas como ângulo correto dentro do qual situamos a inteligência e a ação.

         Do ponto de vista da pesquisa, Durmeval apregoou sua vitalidade em contato com a práxis educacional, advertindo-me para o fato de que, nela, a teoria, separada dos fatos, representa um sutil modelo de dependência e alienação.

         Na sua experiência de professor e pesquisador Durmeval convidou-me a morder o real, a não rejeitar a própria experiência, a visualizar a liberdade brotando de uma energia que a constrói, recortando-a num espaço social e historicamente situado, a compreender que a pedagogia só tem especificidade própria como método de coordenar e aplicar saberes que a transcendem.

         Neste exercício de reler Durmeval e de ouvir novamente sua voz eu o reencontro em todo olhar que indaga pensativo. Eu o pressinto com aquela expressão muito peculiar e o seu jeito próprio de apoiar o queixo sobre as mãos. Eu o redescubro na abraço caloroso da amizade, na fala pausada, no meio sorriso, na crise real (e fecunda) dos que são inquietos, sós e comprometidos com o seu tempo.

         Eu revejo o rosto iluminado do meu amigo. Eu o sinto pleno de vida, longe do medo ou da morte. Percebo, então, que ele esteve desperto enquanto eu dormia. Estendo-lhe as mãos e ele me aponta atrás da noite sua estrela escolhida. Caminhamos juntos e juntos procuramos uma verdade que nos ultrapassa. Abandonamos sentimentos confortáveis e seguimos acreditando que, maior do que a certeza de qualquer resposta, é a possibilidade de levar a pergunta ao seu nível mais agudo. Ao partilhar este momento precioso agarramos, num segundo fugidio, o que sempre nos escapa: o mistério da amizade e colhemos, com delicada alegria, o seu fruto maduro e saboroso. Em paz e em silêncio!

 

Referências bibliográficas

MENDES, Durmeval Trigueiro. "Existe uma filosofia da educação brasileira?" In: Filosofia da Educação Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

_____. Anotações sobre o pensamento educacional no Brasil. Rio de Janeiro, 1986, 7p.

_____. "Subsídios para a concepção do educador" In: Concepção do educador e da universidade. João Pessoa:UFPb, 1988, p. 9-20.


In Durmeval Trigueiro Mendes - filosofia política
da educação brasileira.

Rio de Janeiro: UFRJ / FUJB, 1990. p.175-181.