Nilda
Teves
Professora da Faculdade de Educação / UFRJ
Rio de Janeiro, junho de
1999.
Um intelectual enfrentando a afasia
Conheci pessoalmente Durmeval Trigueiro em 1980, quando a Associação dos Docentes da UFRJ, num ato solene, homenageou os professores atingidos pelo Ato Institucional nº 5, conferindo-lhes o título de Sócio Emérito daquela instituição. Era uma forma de tornar público o reconhecimento social das injustiças de que aqueles professores tinham sido vítimas. Lembro ainda a emoção reinante na expressão dos homenageados, dos seus familiares e amigos. O ato foi além de uma homenagem: foi um momento de confraternização do Velho/Novo corpo docente da Universidade. Antigos mestres, que só conhecíamos de nome e obra, ali estavam concretamente na nossa presença. Sua "corporeidade" era reincorporada naquele momento histórico da UFRJ. Como não emocionar-se com o "chegou atrasado" para a família do Professor Josué de Castro, já falecido, na França? Como não sentir as feridas do Professor Manuel Maurício de Albuquerque, brutalmente torturado nos aparelhos repressivos do Estado? Como não reverenciar a figura do Professor Durmeval Trigueiro, mantido no ostracismo, exilado em seu próprio país durante aquele período tenebroso da nossa história, e agora marcado pelo derrame cerebral? Ficava evidente o quanto a Universidade Brasileira havia sido atingida pelo arbítrio, pela intolerância do regime imposto à Nação brasileira. Naquele momento, a Universidade mostrava o quanto se comprometera com a sociedade; o quanto ela se desviara dos ideais do "saber livre e desinteressado". Ali se afirmava o compromisso em recomeçar a construção de um locus democrático, onde o pluralismo das idéias políticas pudesse acontecer; onde o acadêmico se exercesse efetivamente. Nesse clima de emoção, com o auditório do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza repleto, encontrava-se o Professor Durmeval Trigueiro, silente e atento aos novos tempos, aceitando o desafio de ter de recomeçar...
Logo depois, ele foi reintegrado às suas funções docentes da Faculdade de Educação da UFRJ. A princípio foi encaminhado para o Departamento de Sociologia da Educação; mas, como ele mesmo preferiu, ficou trabalhando no Departamento de História e Filosofia da Educação. Após alguns anos, aceitei seu convite para ministrar suas aulas de Filosofia da Educação Brasileira no Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas, tendo em vista as dificuldades que ele encontrava em falar. Foi ali que pude acompanhá-lo mais de perto. Podia-se encontrá-lo todas as manhãs em seu gabinete: ora recebendo alunos, amigos, ora elaborando projetos de pesquisa, ora examinando propostas de trabalhos dos colegas; enfim, produzindo o tempo todo. Nada passava despercebido àquele homem. Durmeval atualizava-se a cada momento sobre o que se passava no mundo e naquela instituição. Estava sempre presente naquilo que acontecia ao seu redor. Com sinceridade e competência, lia os trabalhos dos alunos. Era admirável a forma como ele os respeitava não só no preparo das aulas, na elaboração da bibliografia, mas também na atenção com que corrigia seus trabalhos. Fazia apontamentos, indicava bibliografia correlata aos assuntos, anotava os aspectos ainda frágeis das assertivas, elogiava as conclusões bem elaboradas; enfim, tratava a produção dos alunos com a maior dignidade. Muitos desses trabalhos serviram de base para posteriores dissertações de mestrado.
O que mais impressionava era a luta travada por ele em não se deixar isolar. Muitos pré-conceitos giram em torno da afasia. Um deles é achar que aquele que é acometido por este distúrbio passa também a ter falhas na consciência. Isto pode até ocorrer, mas não é uma conseqüência direta do problema. O Professor Durmeval Trigueiro foi um caso típico de como, apesar da doença, a enfrentou a partir da plena consciência que tinha de si, do mundo que o cercava e daqueles que de alguma maneira se ligavam a ele. Preservando sua intimidade, lutando contra o sentimento de comiseração, defendendo o direito de continuar comunicando-se com os outros, ele soube muito bem organizar-se para a nova fase de sua vida. Sabia que o tempo que necessitava para elaborar seu discurso não era o mesmo a que o ouvinte estava acostumado. Como intelectual, fez da escrita-leitura sua âncora de suporte. Assim como Jean-Paul Sartre, que, na impossibilidade de ler, tinha em Simone de Beauvoir sua âncora-visual: ela é quem lia para ele, mantendo-o atualizado do que estava sendo discutido no mundo. Quando entrevistado sobre como estava se sentindo enquanto homem que havia passado a maior parte de sua vida lendo e que já não podia fazê-lo, Sartre respondeu: "Sinto-me aprendiz, eterno aprendiz. Neste momento estou desenvolvendo a capacidade de ouvir, para acompanhar o ritmo de leitura dela (de Simone)." Sabia que o ritmo da leitura não é igual ao ritmo da audição, e que ele agora tinha de fazer a passagem de um para o outro. Mais ainda, que tudo dependia dele, de sua capacidade de não deixar isolar-se.
Foi assim também com Durmeval. Obstinadamente, ele procurava a forma de continuar dizendo o que pensava, acatando ou não as idéias de seus interlocutores, mas nunca silenciando, talvez movido pelo imaginário cristão, onde a omissão é pecado. Esse exemplo nos serve para entender como Durmeval sabia "defender-se" das limitações impostas pela condição física, criando seus próprios mecanismos. Vivendo dialeticamente, ele negou a negação de sua fala o tempo todo escrevendo. Foi a forma concreta que encontrou para superar o isolamento. A categoria da intencionalidade da consciência, da capacidade criadora do homem, tão presente em seus trabalhos, não era somente fruto da especulação filosófica: era tecida na práxis do seu cotidiano, lutando contra a adversidade do real concreto em sua vida, sua limitação física - a fala. Nosso amigo não internalizou esse problema como uma im-potência, como incapacidade de dialogar com o mundo. Ao contrário, demonstrou concebê-lo apenas como sendo uma contingência do seu corpo concreto, e não a sua essência mesma. Sabia que dispunha de outras potencialidades e soube explorá-las enquanto pôde. Na verdade, ele lia e escrevia compulsivamente e, como não podia deixar de ser, a escrita/leitura foi o recurso que utilizou. Nas reuniões de Departamento, na UFRJ ou na FGV, onde estava sempre presente, antes de começarem os debates em torno dos temas ele trazia sua posição por escrito. Distribuía seu texto e nele se segurava, lendo-o, e levando-nos a ler com ele, deixando claro para todos o que pensava, o que admitia ou rejeitava. Nos debates, quando se sentia pressionado a falar, procurava no texto algo que pudesse nortear sua fala. Mesmo que mudasse de opinião, o texto lhe servia de pré-texto. Isso para ele não era difícil, visto o domínio que tinha sobre os assuntos, mas era interessante observar como ele aperfeiçoava sua nova metodologia: com rapidez, indicava em que parte do texto aquilo que queria dizer e, quando era o caso, modificava. Com esses recursos exercia sua própria prática pedagógica, inclusive educando-se a si mesmo - o Educador. Terminadas as discussões, sempre queria saber qual seria a pauta da próxima reunião e ficava satisfeito quando lhe diziam que ele seria informado antes do encontro. É evidente que com isso ele queria tempo para preparar-se para a próxima "luta verbal", onde poderia enfrentar qualquer debate. Face a sua sólida formação filosófica e sua experiência acerca da educação, o que realmente queria era tempo para falar sem ser interrompido.
Pode-se dizer que a afasia, enquanto uma moléstia física, produz também seqüelas existenciais, caso o indivíduo perca a capacidade de ser sujeito de sua própria história. Com certeza isso não ocorreu com o Professor Durmeval Trigueiro, que montou seu sistema de defesa contra o que o isolaria do mundo. Teve o que dizer e soube como dizer até seus últimos instantes de vida.